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Faleceu Baptista-Bastos

Armando Baptista-Bastos
Lisboa, 27/02/1934 - 09/05/2017
«Sou do Belenenses. Costumo dizer: no melhor pano cai a nódoa»

Um certo Pepe em tudo o que é Largo da Paz

Baptista-Bastos, «A Bola», Novembro de 1993 
“(…) Certa ocasião, discreteando com Eusébio, o Grande, sobre nomes, mitos e fábulas, perguntei-lhe quem fora o maior entre os maiores. E ele: - O Pepe. Nunca o vi, nunca o conheci. Quando ele morreu talvez nem eu fosse nascido. Mas foi o Pepe. Disseram-me isso, lá, em Moçambique, num largo que havia, no Caniço, e que se chamava o Largo da Paz.”

Matateu: O Deus Velho - que não dizia mal de ninguém !

Matateu-Monumento foi incubado nas Salésias, num famoso encontro de futebol que opôs as equipas do Belenenses e do Sporting.
Fautor primeiro da clamorosa vitória do grupo de Belém, o rapaz foi sacado aos ombros por uma multidão congestiva, que o transportou pela provecta Rua das Casas do Trabalho, onde meninas se debruçavam das janelas, subtraindo da morfologia do negro atónito resquícios de uma beleza de Apolo. E exclamaram:
«Que simpático !»
«Bonito, mesmo !»
A coroação processou-se no dia imediato.
Cronistas desportivos, em lufa-lufa de imagética, besuntaram o nome de Lucas Sebastião da Fonseca com cognomes bizarros: «O Napoleão do Futebol Português», «O Artilheiro Negro» ou «Perigo na Grande Área com Matateu ao Remate».
Foi assim. depois, certa imprensa alvoroçou-se em atribuir-lhe comentários aos sistemas de jogo, dissertações didácticas sobre a galeria de futebolistas portugueses, avisos esclarecidos sobre as grandezas e misérias da bola.
Matateu (termo que no dialecto landim, significa «crosta»), perplexo, deslumbrado, deixou-se ir nas sugestões da popularidade doméstica.
Sofreu, de bom grado, as metamorfoses psicológicas determinadas pela súbita celebridade - mas nada conseguiu destruir-lhe a pureza inicial.
A metade-instinto de que o carácter do homem é formado permaneceu fiel em si. As subtilezas da corrente arte da hipocrisia não aprendeu nunca. Os malabarismos com as palavras - desconhece-os.
Matateu não sabe nada de nada e confessa isso abertamente, honradamente, porque a honra, nele, não é uma conquista, mas um instinto nato.
Falo com Matateu, Pergunto:
- Costuma ler ?
Ele: - Jornais. A secção desportiva dos jornais. Gosto muito de ver o meu nome nos jornais.
- Sabe quem é Hemingway ?
- Não.
- E Picasso ?
- Esse também não.
- E Aquilino Ribeiro ?
- N… Espere aí… Ribeiro, disse Aq… a quê? A-qui-ni-lo Ribeiro ?
- Não foi Aquinilo Ribeiro, foi Aquilino Ribeiro.
- Pois. Não, não conheço mesmo nada desse nome.
- Gosta de música ?
- Um pouco.
- Sabe quem foi Beethoven ?
- Não.
- E Wagner ?
- Não.
- Mas gosta de música ?
- Um pouco. Samba. Sim, gosto de samba.
- Sabe quem foi Dick Farney ?
- Não.
- E Maysa Matarazzo ?
- Não.
- Que divertimentos prefere ?
- O cinema. Mas é uma chatice. Adormeço sempre. As letras daquilo que eles dizem passam a correr. adormeço sempre.
- Leu alguma vez um livro ?
- Nunca até ao fim.
- Porquê ?
- Não percebo o que os livros querem dizer.
- Você tem viajado muito. de que país gostou mais ?
- Da Itália.
- Porquê ?
- Por causa das mulheres. Lindas. Comi algumas. muito boas. Gosto bastante da Itália. Que rico país para um preto viver !
- Ouça uma coisa, Matateu…
- Olhe, escreva o que quiser; é assim que eu faço sempre, quando estou com um jornalista que me parece bom rapaz. Escreva o que quiser e ponha essas palavras na minha boca. À vontade. Mas não ponha lá que eu disse mal… Matateu não diz mal de ninguém !
Que factores típicos originam, entre nós, o aparecimento e a fomentação dos «monumentos-mitos»?
O caso de Matateu é particularmente relevante para, sem delírios de interpretação, nos aproximarmos de uma perspectiva justa.
O factor «paixão clubista» é, aqui, periférico, pois o avançado belenense não é um caso local, mas sim geral.
Problemas de ordem vária entre os quais um, porventura o mais importante, o de sociologia, entram na parada: repare-se que, servindo-nos da tábua cronológica, Vítor Silva e Pepe, Pinga e Mourão, Chico Ferreira e Rogério, foram famosos no seu tempo - mas não tão populares como Matateu.
Porquê ? Porque, nos últimos decénios, os adeptos do futebol aumentaram em cifras impressionantes, implicando, necessariamente, o aparecimento de uma imprensa dita especializada, com terminologia e características próprias, assim como o desenvolvimento, na rádio e na televisão, de programas estritamente dedicados ao futebol. É diferente vistoriar se foi acréscimo do público adepto que originou o acréscimo de uma nova teoria informativa, ou vice-versa. A verdade porém, é que vários jornalistas desportivos passaram a ser conhecidos, e discutidas as suas opiniões, só depois das duas últimas décadas, embora muitos de entre eles (agora com o académico rótulo de «mestres») tivessem na banca assente nos periódicos de há mais de trinta anos.
Pormenor curioso: quase todos os «mestres» conseguiram um estilo redactorial típico. que lhes conferiu uma chancela de elite.
De facto, ao analisarmos as prosas de Cândido de Oliveira, Ribeiro dos Reis, Tavares da Silva, Raul de Oliveira ou Ricardo Ornellas, verificamos que reflectem um tom contrapontístico com o dos originais dos jornalistas desportivos considerados menores.
A reforçar esta concretização de pormenor vem, depois, o facto de o futebol receber um decisivo apoio das entidades governamentais: as facilidades e as verbas concedidas para a construção de estádios e de campos de jogos, as medalhas e as honras atribuídas, são do conhecimento geral.
Uma sociologia específica ? Sem dúvida. E com toda a espécie de razões implicativas: interesses privados, primazia do acessório em detrimento do essencial…
Matateu-Monumento é uma consequência, não um princípio. Em Lourenço Marques, donde é natural, levava uma existência sem sobressaltos, saudavelmente rotineira. Tinha amigos, as solicitações de que era objecto traduziam-se nas necessidades mais elementares, praticava o futebol como actividade marginal e tencionava especializar-se num ofício mecânico.
Gostavam dele como era, não por aquilo que era.
Há alguns meses, durante uma viagem que fez a Lourenço Marques, o autor destas linhas notou que o círculo dos amigos de Matateu se disseminara: tomavam-no por uma espécie de apóstata. De tal maneira ele estava que já nem falava landim !

(Posteriormente, na conversa que tive com o futebolista, este próprio me confirmou que se esquecera, quase totalmente do dialecto.)

Os largos anos passados em Lisboa haviam-no transformado, sem que talvez ele mesmo se apercebesse. 
Matateu todos os gatos e cães de pêlo escuro ? O automóvel ? As viagens ? O certo é que o jogador de futebol. Arredado do seu habitat natural, continua, apesar de viver há largos anos na capital portuguesa, a não resistir à mais banal sabatina.
O que se lhe tem imputado como de sua lavra é inventado - é uma tenebrosa traição ao próprio Matateu.
Que não diz mal de ninguém. Que nunca leu um livro até ao fim, porque não entende o que os livros dizem.

Baptista Bastos, in "As Palavras dos Outros" (2ª edição, revista e aumentada - 1975) Editorial Futura.

Baptista Bastos entrevista Matateu: "O Matateu não diz mal de ninguém"


BB - (...) 1960, 61. Eu tinha ido para o "Almanaque" expulso d’ "O Século", por motivos políticos. E queríamos fazer um número sobre os "monumentos" nacionais. O Matateu, a Amália Rodrigues - com uma capa espantosa do João Abel Manta.
Uma publicação que tivesse mais de 120 páginas não ia à censura prévia, era um truque que arranjávamos, ter mais de 120 páginas. Decidiu-se que eu ia entrevistar o Matateu, e pergunto as coisas ao contrário.

P. - É uma entrevista muito cruel...Se ele sabe quem foi o Aquilino, o Beethoven....

BB - Para dar a imagem devolvida [da nação], digamos. Extremamente cruel. Qual é o país que gosta mais? É a Itália. Então porquê? Por causa das mulheres, gostam muito dos pretos...

P. - Marquei aqui [no livro "As Palavras dos Outros" que pode ler clicando aqui]: "Por causa das mulheres. Lindas. Comi algumas. Muito boas. Gosto bastante da Itália. Que rico país para um preto viver!" Ele disse mesmo: "Que rico país para um preto viver!"?

BB - Rigorosamente. O Matateu era absolutamente invulgar, e não sei se eu devia ter publicado essas coisas. Ele subia a Calçada da Ajuda e os miúdos atrás dele. Todo o gato e cão era Matateu. Ele sentava-se naqueles bancos corridos das tabernas a conversar com as pessoas. Era extremamente popular. Mais tarde tentei ressarcir-me escrevendo uma crónica onde dizia que fui muito cruel. Porque ele diz lá na entrevista: "O Matateu não diz mal de ninguém." (...)

Entrevista de Baptista Bastos ao suplemento do Público, Ípsilon. 2007.
Caricaturas de Baltazar e Miguel Salazar

O Largo da Paz pela pena de Baptista-Bastos


A casa era no Largo da Paz. O Largo da Paz é um intermédio quase esquecido entre a Calçada da Ajuda e a Calçada do Galvão.
Entre estas, a Rua da Memória e, a meio da Rua da Memória, havia o Salão Portugal, que passava filmes três vezes por semana, dois filmes por sessão, com desenhos animados e jornal de actualidades. O Salão de Portugal é hoje uma ruína afrontosa, um resto do que foram cálidas lembranças.
As coisas eram simples e, por simples, muito bem delimitadas: a maioria acalentava o Belenenses, os outros dividiam-se entre o Carcavelinhos e o Rio Seco Futebol Clube.
Aos sábados, ia-se ao cinema; aos domingos, os homens sentavam-se nos bancos corridos das tabernas, conversando com sobriedade, e os miúdos ficavam a observá-los, percebendo-os rodeados de respeito e de grandeza. [...] Baptista-Bastos, Novembro de 1993.
Caricatura de Baltazar

Sou do Belenenses. Costumo dizer: no melhor pano cai a nódoa

"Sou do Belenenses. Costumo dizer: no melhor pano cai a nódoa" Baptista-Bastos, Diário Popular 21.04.1984 
“[...] Sou um senhor português grisalho, pesado, às vezes taciturno, outras esfuziante. E sou do Belenenses, que dispõe dos mesmos atributos ou acessórios. Ser do Belenenses (desculpem a presunção) é habitar um território de afectividades electivas: como pertencer a uma nação permanentemente movida pela esperança e percorrida pelo sopro do sonho. [...]” Baptista-Bastos, Maio de 1993